quinta-feira, junho 28, 2007

Referendo: outra vez sim

Mantendo a pluralidade da Boina, aqui vão algumas notas em réplica ao David.

Uma das grandes questões para a dispensa do referendo parece girar em torno do novo tratado já não se tratar de um acto de natureza constitucional, não passando de mais uma camada do processo de revisão dos tratados. Contudo, a questão da constitucionalidade do tratado é daqueles tópicos cuja relevância no processo é, em meu entender, das mais relativas e que tem sido francamente sobrevalorizada.

Em primeiro lugar, muita doutrina já defende a existência nos actuais tratados de uma constituição europeia em sentido material, ainda que não formal. O Tratado Constitucional viria, para muitos, dar esse passo formalizador, mas também não eram poucos os que realçavam que se tratava de um Tratado constitucional e não de uma Constituição, no sentido próprio que o termo conhece no Direito Constitucional (e que permitiria apontar um traço de federalização acrescida à União). Muda-se o nome e algumas vestes típicas de estadualização, mas o essencial vai ficar (já lá irei).

Em segundo lugar, o carácter inovador do Tratado Constitucional não era tão significativo quanto isso. A revisão operada com Maastricht em 1992 continua a ser bem mais revolucionária e intensificadora do processo de integração do que qualquer outro tratado desde 1957. A virtude do Tratado Constitucional passava pela consolidação num único texto do conteúdo dos tratados, da inclusão da Carta dos Direitos Fundamentais no seu conteúdo e da introdução das reformas institucionais necessárias ao funcionamento da Europa a 27 (ou mais). O reforço de poderes do PE, da participação dos parlamentos nacionais, da fusão do serviço externo da União, entre outras novidades, tudo isso vem assegurar o aprofundamento de linhas de força delineadas na década de 90. No fundo, ele próprio era mais uma camada no processo de revisão – tinha a bondade simbólica do nome e da racionalização, mas o exercício era mais de revisão do que de refundação.

Finalmente, e particularmente tendo em conta as conclusões do Conselho Europeu (disponíveis aqui) e que passarei a analisar topicamente de seguida, estamos perante uma espécie de “Tratado-Constitucional-menos-umas-coisas-simbólicas-e-outras-que-faziam-espécie-lá-do-outro-lado-da-Mancha-e-outras-ainda-que-permitem-dar-a-entender-aos-franceses-e-aos-holandeses-que-isto-é-outra-coisa-para-ver-se-desta-vez-não-chateiam”, pelo que o autor material em termos de inspiração ainda continua a ser, em grande medida, a dita Convenção. Senão, vejamos tudo o que era novidade e que está previsto ser retido (ver o mandato para a próxima CIG nas referidas conclusões do Conselho):

1. Personalidade jurídica única da União;
2. Referência ao primado (sai do corpo do Tratado e passa a declaração anexa, que remete para a jurisprudência do Tribunal de Justiça, que acabava por ser o que estava no Tratado Constitucional);
3. Carácter vinculativo da Carta dos Direitos Fundamentais (ainda que com um esquema um pouco pateta de remissões para declarações anexas);
4. Alargamento do papel dos parlamentos nacionais quanto à subsidiariedade e proporcionalidade;
5. Cargo de Presidente do Conselho Europeu;
6. Rotatividade na Comissão;
7. Manutenção do novo sistema de maiorias qualificadas, com a nova nuance transitória de 2014 a 2017 para calar os gémeos polacos;
8. Manutenção das alterações ao sistema de cooperações reforçadas;
9. Manutenção das alterações quanto à PESC e à cooperação policial e judiciária em matéria penal;
10. Introdução de norma expressa a admitir a saída da União, como no projecto do Tratado Constitucional.

E vejamos agora o que deverá mudar simbólica e terminologicamente:
1. Desaparece o termo constituição e seus derivados;
2. Desaparece o termo Ministro dos Negócios Estrangeiros (ficamo-nos por Alto Representante);
3. Mantém-se o nome das directivas, decisões quadro e regulamentos, em detrimento da lei europeia e da lei-quadro europeia (apesar de se prever um esquema de manutenção da distinção entre actos legislativos e actos com natureza de regulamentação);
4. Cai a disposição sobre o hino, o lema e a bandeira (mas a referência ao euro fica sub-repticiamente no redenominado Tratado sobre o funcionamento da União, antigo Tratado CE - e quanto ao Beethoven atrevam-se a vir dizer-me que foi extinto!).


Em suma, o que se altera substancialmente é de tal forma reduzido que os argumentos que justificavam a ratificação por via de referendo do Tratado Constitucional se mantêm quase na íntegra quanto ao novo Tratado Reformador, se fizermos fé nas conclusões do Conselho Europeu que mandatam a CIG que aí vem. Ou seja, estamos essencialmente perante cirurgia estética.

Para concluir, falta-me ainda falar da questão de fundo, do fundamento para o referendo. Se de facto o próprio Tratado Constitucional não era assim tão revolucionário, porquê o referendo? Em primeiro lugar, para que finalmente se possa legitimar directamente uma opção estruturante como a integração europeia, dando directamente a palavra aos cidadãos portugueses, depois de duas tentativas frustradas. Em segundo lugar, porque este exercício reforça a própria legitimidade acrescida que se quer para o tratado, começando a solidificar o caminho da constitucionalização da realidade europeia, envolvendo directamente os povos da Europa. Contraditório? Não de todo – apesar de não se chamar constituição, o tratado reformador vai representar mais um passo nesse caminho de transformação da União. Para quase todos os efeitos (com excepção da questão da sua nomenclatura e força jurídica formal) ele representará a lei fundamental da União Europeia. E, mais do que isso, se for bem sucedido, representará provavelmente o último capítulo da presente fase de revisão dos tratados começado em 1992 (como dizia a Prof.ª Maria Luísa Duarte, com quem tive o prazer de dar aulas o ano passado, um verdadeiro PREC - Processo de Revisão em Curso). Se tudo correr bem, gozará de uma estabilidade acrescida em relação aos seus antecessores imediatos (Maastricht, Amesterdão e Nice). Em terceiro lugar e último lugar, porque se procedeu a uma revisão constitucional cirúrgica em 2005 única e exclusivamente para admitir que se referende o tratado em bloco e que se formule uma pergunta simples e concisa.

Confesso que preferia uma Assembleia Constituinte Europeia, eleita por todos os cidadãos da Europa em simultâneo, que aprovasse uma Constituição em sentido próprio, federalizando a União. Sei, contudo, que nos próximos tempos é uma realidade com a qual não posso contar realisticamente. Sendo esta a via da reforma institucional para os próximos anos, então ao menos que seja sufragada onde está a soberania: no povo.

Para finalizar, e tendo em conta que a revisão constitucional de 2005 veio permitir simplificar a pergunta, deixo uma sugestão para a mesma: Concorda com a ratificação do Tratado Reformador da União Europeia?

Espero vir a ter uma oportunidade para dizer que sim.


1 comentário:

Anónimo disse...

Segundi uma vez quando perguntaram a Henry Ford porque é que os clientes não podiam escolher a côr do Ford T que queriam (eram todos pretos), Henry Ford protestou dizendo que o cliente tinha todo o direito a escolher a côr do seu Ford T desde que escolhesse o preto.
Na União Europeia é semelhante, os cidadãos têm todo o direito a pronunciar-se sobre os tratados desde que a sua opinião seja "Sim".
E, é por isso que não se querem referendos, mesmo que a probabilidade seja pequena existe sempre alguma das pessoas dizerem "Não". E os nossos lideres não gostam de tomar riscos. riscos são para os outros.

Concorda com a ratificação do Tratado Reformador da União Europeia?

Espero vir a ter uma oportunidade para dizer que Não.