quarta-feira, junho 27, 2007

Fátima, inveja e piqueniques

Eu não tenho o hábito de transcrever na totalidade posts alheios. Acho que os meus já devem ser suficientemente entediantes - mas este é diferente:

"O país real

Sempre que vou ao Porto paro na estação de serviço da Antuã e ali fico durante uns minutos. É que a Antuã é paragem certa das centenas de excursões que saem do Minho e de Trás-os-Montes em direcção a Fátima e ao sul do país. E que delícia!

Magotes de gente de todas as idades que sai dos autocarros e se instala nas mesinhas ali à volta. Há tupperwares com pastéis de bacalhau, garrafões de tinto e inevitavelmente ouvem-se os últimos êxitos do rancho lá da terra. Comida, bebida e música. Bom de ver que a coisa acaba em bailarico ali mesmo no parque da estação para repulsa dos restantes utentes.

Aqui há uns anos dir-se-ia que este era o país real. Agora, o país real é o país suburbano encavalitado em torres de betão algures na Póvoa do Varzim ou em Mem Martins. Gente por natureza insatisfeita que cultiva a inveja em vez de batatas. Gente que olha com desprezo e sobranceria para quem faz “figuras tristes” em estações de serviço. Os meus amigos da Antuã são uma espécie em vias de extinção. Como os sérvios no Kosovo também eles se tornaram numa minoria no seu próprio país.

O país real agora é outro. Mais moderno. Mas muito mais feio
."

Este exercício em nostalgia bucólica é delicioso. Admito que também eu oiço histórias na minha família dos tempos em que lá em casa não grassava a inveja, e as batatas cresciam viçosas no jardim! Era bonito! Antigamente a inveja era mal vista porque as pessoas eram boazinhas. E tinham muita fé. E toda a gente sabe que a fé pode fazer mal aos joelhinhos que se esforçam por aguentar a viagem para Fátima, mas que elimina a inveja, ó lá se elimina! Toda a gente sabe que a quantidade de inveja per capita é inversamente proporcional à quantidade de fé. E de simplicidade. Sim porque a modernidade é complicada, as pessoas têm direitos e deveres individuais e isso é complexo. E a complexidade lixa a vida às pessoas - daí a inveja.

Rodrigo Moita de Deus: eu não me rio das "figuras tristes" de uns cidadãos quaisquer a cantar e a beber numa estação de serviço. Sorrio, vá. Eu cá acho bem mais digno de escárnio o paternalismo reaccionário que continua a pintar de cor-de-rosa o antigamente e a temer o presente. É que a modernidade portuguesa é perfeitamente compatível com cidadãos com vontade de passar os fins-de-semana em Fátima a... fazer as coisas que se fazem em Fátima. Com isso e com muitas outras coisas que lhe agradam pouco a si e a mim. Agora o Antigamente, o seu Antigamente, é que asfixiava; o seu Antigamente é que elevava a mediocridade e a intolerância a princípios fundadores do Estado e da identidade nacional.

E olhe que não estou a ser apologista do progresso pelo progresso. O progresso não é uma panaceia. O progresso, entendido como a mera destruição do que vinha antes, não é necessariamente salutar. Mas se há um país onde o progresso foi exemplar é Portugal. Podia entediá-lo com coisas banais e insignificantes como os rankings de Portugal no Human Development Index (e outros) dos anos 70 para cá, mas certamente me dirá: para quê a prosperidade, a longevidade e as liberdades que lhes deram vida, perante a tragédia dos nossos dias que é a inveja, a arquitectura suburbana desagradável e a falta de entusiasmo das pessoas pelas batatas, pelos pastéis de bacalhau e por Fátima?

P.S: A analogia com os sérvios no Kosovo é que não percebi. É porque são cristãos-ortodoxos num mar de muçulmanos, tais como os Fatimidas em Portugal nadam num marasmo de ateísmo invejoso? Ou é só solidariedade ecuménica? Ou é identificação com uma nostalgia piegas e chauvinista em relação ao passado longínquo?

1 comentário:

Anónimo disse...

Oppenheimer, acho que você está a ser um pouco injusto. Se o autor do post que transcreve contrapusesse ao mundo rural «do antigamente» o mundo urbano de hoje, seria uma coisa; mas o que ele contrapõe, parece-me, é a unselfconsciousness dum certo viver à alienação suburbana presente. Nisto sinto-me tentado a dar-lhe razão.
O post é ingénuo? É. O paraíso nele descrito nunca existiu? Pois não. Nos meios rurais existe tanta ou mais inveja e boçalidade quanto nos subúrbios das grandes cidades? Existe. Ganhámos muito nos últimos trinta anos? Ganhámos, olá se ganhámos!
E no entanto, a perda descrita no post é real. Basta comparar a linguagem dum rural inculto com a dum suburbano igualmente inculto: a primeira é rica, expressiva, variada, coesa, enquanto a do segundo é pobre, desarticulada, inexpressiva, inexacta, cheia de bordões e chavões.
Ganhámos muito mais do que perdemos, é certo; mas temo que já tenhamos parado de ganhar e ainda estejamos a perder.