sexta-feira, junho 22, 2007

O Hamas também tem cabecinha para pensar

Não partilho do optimismo de Israel e dos EUA em relação ao colapso do governo de unidade nacional palestiniano. São tristes as imagens que nos chegam dos Territórios Ocupados e não há nada mais dramático do que uma guerra civil: quanto mais o povo palestiniano está desunido, mais a paz é adiada.

Têm razão aqueles que dizem que os EUA, Europa e Israel também partilham responsabilidades pelo estado da situação. Mas nada me parece mais paternalista do que ver os palestinianos como uma espécie de massa disforme de vítimas que se limitam a responder a pressões e a ceder perante forças que não controlam. Enfim, não concordo com uma visão determinista do que está a acontecer, que vê a relação entre Ocupação israelita e "abandono" ocidental por um lado, e colapso da unidade palestiniana por outro, como de causalidade pura e simples.

Acima de tudo acho que importa reflectir sobre o papel do Hamas nisto tudo.

Comecemos por partes: o estatuto jurídico da Autoridade Palestiniana (AP); a transferência de dinheiro de Israel para esta; a existência de uma polícia e de umas incipientes forças armadas palestinianas nos Territórios; eleições livres para a presidência da AP e para o Conselho Legislativo Palestiniano; enfim, toda a parafernália de mecanismos legais, diplomáticos e materiais que davam à AP alguns atributos de um Estado embrionário - tudo isto nasceu do processo de paz de Oslo, do reconhecimento de Israel por parte da OLP e da decisão de Israel de passar a tratar esta organização como único representante do povo palestiniano e como interlocutor para a paz.

O Hamas, quando chegou ao poder na Palestina em Janeiro de 2006, não reconhecia Israel, continuava a advogar a expulsão dos judeus de toda a 'Palestina britânica', não pertencia à OLP, e considerava os acordos de Oslo uma traição à causa palestiniana.

Nessas circunstâncias, pergunto-me que outra decisão podia ser tomada pela Europa, pelos EUA e por Israel, que não o isolamento do Hamas e, por consequência, da AP. Do ponto de vista jurídico, para a Europa, por exemplo, é simples. O Hamas está na lista de organizações terroristas, com as quais a UE não trata. Nesse sentido, só uma decisão política por parte do Conselho Europeu em retirar o Hamas dessa lista é que tinha permitido business as usual.

E o que é decisivo é que o Hamas nunca o deu o passo decisivo para que este impasse terminasse. A ajuda humanitária americana e europeia aos palestinianos nunca esteve em causa e nunca foi interrompida. Mas o apoio directo à AP não é, nem nunca foi, pensado como esmola para os palestinianos. Faz antes parte de uma decisão política - do tempo de Oslo - de sustentar o mais possível um Estado embrionário palestiniano, com vista a uma solução de dois Estados - Israel e a Palestina - vivendo lado a lado em paz. Como é que se pode esperar da Europa e dos EUA que continuem a apoiar uma AP dominada por uma força política que não subscrevia, nem subscreve, as mais fundamentais working assumptions do esquema de Oslo?

Por cada salário que não foi pago, por cada palestiniano que perdeu o emprego, por cada família palestiniana que passou a ser dependente da ajuda humanitária das NU ou de outros, eu pergunto-me porque é que o Hamas não deu o braço a torcer e disse: "enfim, tirar Israel daqui não tiramos, matá-los a todos não conseguimos, agora estamos nós no poder, agora somos nós responsáveis pelo destino do nosso povo e esse destino tem que incluir um Estado e o único Estado que vamos ter é um Estado mais ou menos nas fronteiras de 1967."

Nada. O mais que ofereceram àqueles (como eu) que tinham esperanças de ver repetir-se a história da OLP (que passou de organização terrorista para parceiro para a paz) foi o programa de Meca do governo de unidade nacional palestiniano, em que, numa linguagem cheia de ambiguidades, se comprometiam a "respeitar" os acordos de Oslo e delegavam a responsabilidade de negociar com Israel no Presidente Abbas.

Que bom! Assim, o Hamas, por um lado, não fazia concessões objectivas nenhumas, condenando a uma morte prematura qualquer tentativa de reanimar o processo de paz; por outro, quem ficava com as responsabilidades pela estagnação era Abbas. Nestas circunstâncias como é que se pode esperar de Israel que negoceie com Abbas enquanto o governo dominado pelo Hamas não dá quaisquer garantias de estar preparado a fazer as concessões necessárias para que essas negociações dêem frutos, ou de implementar seja o que for que delas saia.

O que se confirmou com a conquista brutal de Gaza pelo Hamas foi que esta organização não conseguiu e não consegue (até agora!) mudar de pele. Não conseguiu mudar de identidade. Não tem vocação para representar o povo palestiniano. Não conseguiu resistir à tentação de acumular os poderes e a legitimidade das instituições com os métodos da resistência, da insurgência e do terrorismo...
(Post de duas partes)

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