segunda-feira, maio 21, 2007

Perdi um amigo




Tenho uma grande simpatia pela esquerda latino-americana. Não se trata apenas de admirar o pedigree impecável da luta contra as ditaduras militares, ou da coragem de ter defendido um socialismo flexível e não-alinhado durante a guerra fria, ou do discurso pan-americano e universalista, ou da capacidade de evitar que décadas de torturas, desaparecimentos e assassinatos conspurcassem as jovens democracias com o espírito venenoso da vingança. Admiro acima de tudo a generosidade dos afectos, o heroísmo pessoal e a abnegação que transformaram os heróis da luta contra as ditaduras latino-americanas em heróis universais. Como as ditaduras latino-americanas - da mesma cepa que as ditaduras ibéricas - representaram acima de tudo o triunfo da mediocridade, da estupidez mesquinha e da brutalidade chauvinista, a esquerda latino-americana distingue-se por um dinamismo intelectual humanista e uma vitalidade cultural que imortalizou o destino do continente, e que nos põe todos em dívida para com ela.

Luís Sepúlveda é um dos representantes desta esquerda. Os romances dele que cheguei a ler (Patagonia Express, Mundo do fim do mundo, O velho que lia romances de amor e O Nome do Toureiro) marcaram-me. Ensinaram-me o radicalismo dos afectos, a importância política da empatia, o potencial revolucionário da generosidade. Ao fim de cada uma das suas obras, sentia a fasquia invisível da minha consciência moral e social elevar-se.

Já não lia Sepúlveda há muitos anos e recentemente ofereceram-me um livrinho de crónicas, chamado O Poder dos Sonhos. Ainda está lá tudo: a dor dos anos negros da ditadura, o ódio à injustiça, a generosidade dos afectos e o amor pelo género humano.

Mas neste livro também passei a conhecer um outro Sepúlveda. Por exemplo, um Sepúlveda de um anti-americanismo pré-histórico a cuspir veneno a torto e a direito. Nunca aparecem os EUA progressistas, berço de todo o tipo de movimentos emancipatórios, movimentos feministas, a esquerda dos Democratas etc.. O único fenómeno virtuoso da Grande Babilónia mencionado por Sepúlveda é o movimento cívico dos anos '60 e isso só para acusar Condi Rice e Colin Powell de serem (cito) "traidores da sua raça" por não estarem do lado dos 'bons'. Só existem Bush, Reagan e Kissinger. Como se o Chile de 1973 a 1990 fosse só Pinochet. Ou Portugal de 1932 a 1968 só Salazar. Sepúlveda repete todos os lugares-comuns da esquerda alter-mundista, sem aprofundar nenhum. Slogans. Elogia o poder dos sonhos, mas descreve o mundo como um único pesadelo milenar de opressores a esmagar oprimidos. Cai até na mais estéril das nostalgias da esquerda reaccionária que acha que "antes é que havia valores, hoje estão todos sentados no sofá a ver programas alienantes." E, claro, não podia deixar de fazer a referência ritual, icónica, previsível a Israel, "estado terrorista que assassina sistemática e selectivamente crianças e anciãos" (se não for uma citação exacta, as minhas desculpas, mas anda lá perto).

Estou triste, porque sinto que Sepúlveda e eu temos olhares idênticos sobre o passado, mas discordamos sobre o presente e sobre o futuro e eu quero muito concordar com Sepúlveda. Sem Sepúlveda sinto-me mais só.

1 comentário:

A. Cabral disse...

Nao me esqueco da expressao do Pinter no discurso Nobel que os EUA sao uma sociedade a vender "self-love".

Mas porque e' que os EUA tem que ser uma elaborada aritmetica? Porque e' que os criticando temos que colocar pesos de elogio na balanca para compensar?

Os EUA dos Chilenos foram os da agressao, que pela mao dos Chicago boys lhes disseram: repressao e' progresso. E' esta a America que esta 'a venda. E essa e' a mais importante, nao os EUA intersticial, dos movimentos sociais alias muito fragilizados na ultima decada. Nao espero que os Sul Americanos facam arqueologia para desenterrar absolvicoes americanas, nao seria isso "dar a outra face"?