Retomando o ponto das bençãos do post anterior, deixo uma breve nota pessoal sobre confusão entre esferas pública e religiosa em domínio análogo.
O único acto solene que marca o fim do curso dos estudantes universitários de Lisboa é a benção das fitas, realizada na Alameda da Universidade com o beneplácito das instâncias reitorais. Não querendo pôr em causa o direito que assiste aos estudantes católicos de querer marcar com uma cerimónia religiosa o fim da sua experiência universitária (pedindo perdão por excessos, quem sabe?), a ausência de um acto público, da iniciativa das Universidades Públicas da cidade, deixa um vazio para os estudantes que, como eu, não professam uma fé ou que, como outros, professam uma fé que não a católica, permitindo a uma confissão monopolizar o espaço académico, forçando a mão dos que pouco crentes ou desejosos de um rito de passagem, alinham na sua instrumentalização do evento.
Falando em nome daqueles que vão continuar a ficar de fora, chamo a atenção para o dever público de evitar a perpetuação da marginalização.
9 comentários:
Para que conste, a benção é dos finalistas e não das fitas. Passando por cima da piada fácil sobre o que motiva a celebração eucarística, desta nota pessoal ressalta o desejo, tantas vezes inconfesso, de criar uma religião alternativa na qual se encenariam actos públicos de fé laical. Que se lixe o povo e a sua abjecta crendice. Resta saber se esta cerimónia pública seria obrigatória.
Por isto é que os apelos à separação total entre Igreja e Estado não são para levar a sério. Não visam separar mas criar uma liturgia concorrente.
A explicação para não existirem actos públicos desse teor tão exaltante é muito simples: quase ninguém comunga desse sentimento e mesmo entre a maioria dos que não têm fé não passaria pela cabeça a adesão ao anelado cerimonial de passagem laico e republicano. Entendamo-nos, a confissão não monopoliza o espaço académico, são os membros da academia que aderem à celebração religiosa e a sentem como sua. Não faço juízos de falar sobre o seu grau de "catolicismo", nem reconheço legitimidade a quem os faça, apenas constato que aderem massivamente à iniciativa. Gosto dessa do "falando em nome de", quantos são, afinal, os marginalizados? E, se são assim tantos, para quando o cerimonial público próprio? Porquê esperar pelo beneplácito das universidades? Onde pára a vanguarda do progresso? Aguardam-se hordas de jovens ateus e agnósticos pré-licenciados participando frementemente de um ritual de passagem livre, igualitário, solidário e irrepreensivelmente politicamente correcto sob a sombra tutelar da República e o signo omnisciente da Deusa Razão.
JV
Meu caro JV
O meu amigo Delgado Alves já lhe respondeu com o talento para a polémica política que o distingue. Só uma pequena reflexão. Em Portugal, perante a inércia colectiva que tantas vezes é eufemisticamente apelidada de 'tradição', e que representa a essência do catolicismo folclórico (do qual a queima das fitas é só mais um exemplo), é assim tão inconcebível que o Estado assuma a tarefa de liderar a "vanguarda do progresso"? Num país em que a sociedade civil é frágil, a modernidade tem sido - infelizmente - construída aos safanões pelo Estado e pelas elites. Quem me dera que não fosse assim. Em momentos decisivos não foi (lembro o recente dinamismo refundador da República Portuguesa, também conhecido como 'espírito de Abril' - um verdadeiro momento empírico do Contrato Social Hobbesiano, operacionalizado na Constituição Democrática de '76). Mas de resto, depois de o Poder ter sido raptado (sem legitimidade democrática) durante séculos pela beatice obscurantista que distinguia Portugal, não tenho dificuldades em imaginar a República Portuguesa a recuperar o tempo perdido por via de instituições democráticas. Mas se calhar de ora em diante nem é preciso Estado: eu sei que custa ver os últimos baluartes (quase inofensivos) da fé católica - o folclore 'fatimida', os 'Santos' populares etc - a perderem lentamente significado. O melhor favor que a Santa Madre nos pode fazer é agarrar-se com unhas e dentes a estas demonstrações simbólicas (mas vazias de substância) de hegemonia cultural...
Meu caro Opp,
Registo a sua adesão, ainda que relutante, à "teoria do safanão" e recordo-lhe que um dos seus principais teóricos e intérpretes foi António de Oliveira Salazar, o homem dos "safanões a tempo".
Registo ainda a sua quase omnisciente capacidade de julgar os ritos e tradições dos outros. Tudo, claro está em nome da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade.
A Constituição de 76 não é propriamente o paradigma de uma Constituição Democrática. Mas não deve ter dado por isso.
Noto que ainda não percebeu que a nossa sociedade civil é frágil precisamente por causa da intrusão permanente do Estado bem como dos safanões que as tais elites lhe vão infligindo ciclicamente. Nada como uma elite esclarecida para nos dar os safanões que nós, pobres obscurantistas, andamos a pedir! Comove-me essa crença num finalismo humano certo. Num destino civilizacional inevitável. Num progresso terreno linearmente cronológico. É uma fé. E, como é sabido, tenho algum respeito pelas fés dos outros. Incomoda-me quando não respeitam a minha e quando, a coberto de slogans que têm tanto de pc como de vazios, procuram combatê-la por todos os meios. Relembro ao nosso amigo que, para além dos actos que referiu, e sobre os quais me abstenho de qualificar a sua adjectivação dos mesmos, as pessoas continuam a recorrer à Igreja nos momentos essenciais da sua vida. Quando nascem, quando casam e quando morrerm, para não ir mais longe. Hegemonia cultural? Talvez. Mas é um facto que o fazem. Até que um dos safanões ainda por dar as liberte deste jugo. Faltará pouco, dirão alguns.
O anacronismo das invocações das faltas de legitimidade democrática ficam sem resposta porque outra não merecem.
JV
Caro JV
Ainda bem que resolvemos tudo ao almoço. Não vou maçar os leitores com uma acta do nosso encontro. Bastará dizer que o JV concordou comigo, retira tudo o que antes disse, e prometeu escrever uma carta para o Vaticano pedindo que a Igreja se dissolva espontaneamente. Assim sim, vale a pena conversar com as pessoas.
Eu diria que essa é uma interpretação demasiado livre das minhas palavras.
Curiosamente, fiquei com a impressão nítida que o Opp tinha renegado o "progressismo", o laicismo e o Estatismo e reconhecido o papel insubstituível, precursor e liderante da Igreja Católica em todas as grandes questões dos últimos 2000 anos e que havia manifestado uma vontade sincera de se confessar e de recitar de imediato a ladaínha dos santos. "Kant sucks!", parece ter sido a expressão usada. Mas, se calhar, fui eu que também percebi mal.
JV
Tenho testemunhas que estão preparadas a confirmar que as palavras de despedida do JV foram "Até amanhã, se o Grande Arquitecto quiser" , ao mesmo tempo que me dava um aperto de mão sui generis...
As mesmas testemunhas, se forem idóneas, confirmarão que essa era uma despedida em jeito de provacação. Tanto assim foi que o amigo Opp, com o zelo próprio dos recém-conversos, retorquiu despeitado "Valha-me Nossa Senhora!".
Registo a "preparação de testemunhas", pensei que já se tinham deixado disso.
JV
JV, houve um mal-entendido. Eu disse "Valha-me nossa senhora!", e não "Valha-me Nossa Senhora!" Não sei quem é a Nossa Senhora. Mas a nossa senhora é a Razão. No contexto da exclamação maçónica do meu amigo JV (que gradualmente tem deixado de insistir em virar as costas à Luz)a minha exclamação tinha uma função de aclamação, como quem diz "Valha-me a nossa senhora, a do JV e a minha, valha-me a Razão!"
Essa coisa de partilharmos uma senhora não me parece nada higiénico.
JV
Enviar um comentário