quinta-feira, dezembro 06, 2007

Malabarismos conceptuais

João Miranda escreveu ontem um post no Blasfémias em que sustenta a compatibilidade entre liberalismo e a promoção da homofobia. O post incorre num vício inultrapassável que é a equiparação para efeitos de análise entre uma orientação sexual (a homossexualidade) e um comportamento discriminatório (a homofobia), tratando-os como realidades contrapostas, como se de um jogo de matraquilhos se tratasse. No primeiro caso, aquilo com que deparamos é uma característica intrínseca ao ser humano, um elemento da sua identidade. No segundo caso, e por mais habilidosa que procure ser a argumentação, não estamos perante um mero exercício inócuo de liberdade de expressão, estamos sim perante um preconceito, uma predisposição discriminatória, que pode conduzir à promoção de comportamentos discriminatórios em relação a terceiros. Se procurássemos transpor a argumentação exposta no post para outros fenómenos discriminatórios, substituindo a causa de discriminação por outra, o resultado alcançado seria semelhante ao seguinte raciocínio:
- Liberdade de opinião e de expressão: existe liberdade de criticar os pretos. Cada um é livre de ser racista se o desejar.
- Projectos políticos que visam proibir (ou coagir) a existência de pretos são incompatíveis com o liberalismo.
- Projectos políticos que visam proibir (ou coagir) o racismo são incompatíveis com o liberalismo.
- Movimentos que procuram promover a existência de pretos ou condenar moralmente o racismo são compatíveis com o liberalismo, desde que não tenham como objectivo instituir políticas de Estado.
- Movimentos que procuram promover o racismo são compatíveis com o liberalismo, desde que não tenham como objectivo instituir políticas de Estado.

Da leitura do post depreende-se ainda que a defesa da igualdade de tratamento sem discriminações em função da orientação sexual equivale àquilo que chama de promoção da homossexualidade. Já agora, pergunto como se promove a homossexualidade. Kits promocionais de sócio como os do Benfica, à venda em estações de serviço? Crédito à habitação bonificado? Sorteios de viagens à República Dominicana? Desconhecia que a orientação sexual passa por uma questão de persuasão e de marketing, que é possível promovê-la e convencer terceiros a aderir. Mais uma vez se nota aqui a tremenda confusão entre promover a inclusão de todos na sociedade como iguais e defender o fim da discriminação, combatendo a homofobia, e a noção batida (muito JCN) e sem conteúdo de “promover a homossexualidade”.

Finalmente, parece-me que a afirmação de que o liberalismo é compatível com movimentos que promovem a homofobia representa uma versão francamente deturpada do conceito de liberalismo (ou, se quisermos ser mais simpáticos, uma reinvenção do conceito a partir do zero, sem qualquer conexão com a evolução conhecida da história do pensamento moderno). Recordo-me, entre outros, do que Stuart Mill (que presumo ser insuspeito), escreveu no On Liberty, sobre os limites da liberdade e que gosto de citar a propósito desta discussão:

"The sole end for which mankind are warranted, individually or collectively in interfering with the liberty of action of any of their number, is self-protection. That the only purpose for which power can be rightfully exercised over any member of a civilized community, against his will, is to prevent harm to others.
[...]
The only part of the conduct of any one, for which he is amenable to society, is that which concerns others. In the part which merely concerns himself, his independence is, of right, absolute. Over himself, over his own body and mind, the individual is sovereign".

A promoção da homofobia, mais do que um mero estado de alma individual de desagrado em relação à homossexualidade, representa um programa discriminatório em relação a um conjunto determinado de cidadãos, e que se enquadra sem dificuldade na tal noção de “harm to others” a que alude Stuart Mill. Se quiser ser homofóbico no lar e no círculo da intimidade, é, de facto, totalmente livre de o fazer, desde que guarde a sua vontade de discriminar para si. Pretender passá-lo em forma de movimento para a sociedade e fazer alastrar essa atitude discriminatória é que não é de todo sustentável com a ideia de liberalismo: a actividade de promoção de uma discriminação vai ser a causa directa de um dano na esfera da vítima da discriminação. Liberalismo é muito mais do que uma ideia de cada um por si e outros que se lixem. Pressupõe a existência e a garantia de condições para que cada um possa desfrutar ao máximo da sua esfera de liberdade, livre de inibições de origem discriminatória.

3 comentários:

Héliocoptero disse...

Clap! Clap! Clap! Na moche!

Anónimo disse...

Comentário Prefeito

Anónimo disse...

Fossem estes, auto-intitulados liberais, peixes, Pedro, e talvez te ouvissem!

Trata-se de facto da capa da moda para todo o tipo de extremismos ultra-conservadores.

Abraço
Artur