Acabei hoje de ler um clássico da historiografia portuguesa, "Os Devoristas", de Vasco Pulido Valente. Trata-se de um livro essencial sobre o período entre o triunfo liberal (1834) e a revolução de Setembro (1836) que eu há muito perseguia e que a Feira do Livro deste ano me trouxe em nova edição para a cabeceira. Nem de propósito, acabo de ler este post do Daniel Oliveira no Arrastão e sinto que tenho de transcrever um excerto do prefácio à 2.ª edição (esta) da obra. Trata-se da única parte do ensaio em que o historiador abandona o palco e deixa uma série de considerações ideológicas, na linha do que é detectado por Daniel de Oliveira e a que Vasco Pulido Valente nos tem habituado no Público dos últimos tempos:
"Na história portuguesa o "liberalismo" não foi uma ruptura, foi um prolongamento. Pior ainda: foi um prolongamento que aumentou a centralização e a omnipotência do Estado e enfraqueceu as raras instituições independentes ou semi-independentes dele (a Igreja e a Universidade). Dali em diante, como se sabe, esse processo não parou. A República, a Ditadura e a democracia "europeia" de hoje aumentaram, não diminuiram, o peso do Estado sobre a sociedade. Com uma diferença. Em 1834, a esmagadora maioria da população vivia da agricultura, o que lhe dava por natureza uma certa autonomia. A presença do Estado era sentida nas cidades e em algumas vilas particularmente importantes. Excepto pelo imposto, pelo recrutamento militar e, de longe em longe, pela justiça, não era sentida no país rural. Quando o grosso da população se transferiu para a "indústria" e os "serviços", mesmo essa forma acidental de liberdade acabou."
4 comentários:
Se me permite a sugestão, e para perceber melhor o que VPV aí escreve, leia a seguir o muito mais recente livro de A.M Hespanha "Guiando a mão invisível"; ajuda.
Cordialmente,
António Figueira
Pedro,
Tenho que confessar que sempre tive um ódio, atrevo-me a dizer visceral pelo Vasco Pulído Valente. Até que há poucos meses decidi ler a biografia de Henrique Paiva Couceira, escrita pelo mesmo.
Aí também comecei a partilhar da tua análise. De facto, VPV é um bom historiador, com um modo de escrita simples e fluente que nos permite ler a história como se de um romance se tratasse. O pior é quando voltam novamente as opiniões estapafurdias deste sr. a quem a democracia deve ter feito muito mal, pelo menos a julgar pela forma como o mesmo a trata.
Um abraço.
João Gomes
http://aquelaopiniao.blogspot.com
"Na história portuguesa o "liberalismo" não foi uma ruptura, foi um prolongamento. Pior ainda: foi um prolongamento que aumentou a centralização e a omnipotência do Estado e enfraqueceu as raras instituições independentes ou semi-independentes dele [...]."
Bom, mas na verdade o liberalismo nunca enfraqueceu o Estado - e ao contrário do que VPV diz, esse não é um fenómeno português. É um fenómeno da Modernidade.
Logo para começar, foi o Liberalismo que criou o Estado nos moldes que hoje o conhecemos. E, como Rosanvallon escreveu, a transição entre o Estado protector de direitos formais e o Estado que providencia a sua concretização é, nas palavras do autor, um duplo movimento de radicalização e de correcção. Ele segue a lógica própria do Estado-protector, dando-lhe coerência e procurando garantir que o indivíduo é verdadeiramente livre.
Em Maio escrevi um post sobre "A CRise do Estado-Providência" nesse mesmo sentido (http://o-reino-dos-fins.blogspot.com/2007/05/origem-e-decadncia-do-estado-providncia.html).
Que VPV não o perceba, é natural - para ele, Portugal é o centro e a fonte de todos os males, se excluirmos a França e todo o mundo não anglo-saxónico em geral.
Caro António Figueira,
Conheço e li a obra do Prof. Hespanha. Não só não penso que permita explicar a lógica hegeliana invertida de VPV, como não afasta aquilo que pretendia criticar transcrevendo o prefácio dos Devoristas: determinada leitura pessimista da realidade e do passado recente, associada a uma hipervalorização de uma pretensa era de liberdade pré-estadual.
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