domingo, setembro 17, 2006
A Igreja, o passado e a contrição
Tiro o chapéu a Bento XVI. Percebeu rapidamente o alcance do que disse e tirou as consequências que tinha que tirar. Para a próxima é melhor não citar um imperador islamofóbico do século XIV - cismático ainda por cima (ver o Grande Cisma Oriental de 1054). Terá sido a citação uma espécie de piscar de olho ecuménico aos primos gregos? Não, foi mesmo só disparate.
Ironicamente, uma das igrejas que foi queimada na Palestina como represália contra o Vaticano foi uma igreja Grega Ortodoxa em Nablus. O papa diz disparates, os palestinianos não percebem nada e quem leva na cabeça são os pobres dos Ortodoxos.
Enfim... Ambiguidades da globalização.
Mas e a questão das desculpas... A Igreja já pediu desculpas, já exprimiu remorsos várias vezes. Por todo o tipo de malandrices. Chega, não?
Não.
Não é a Igreja que decide quando é que chega. São as vítimas de séculos de participação mais ou menos activa da Igreja nos maiores horrores da história da humanidade. Sublinho, da Igreja, não necessariamente dos católicos, do rank and file católico. Felizmente, a rigidez milenar da hierarquia católica permite-nos esta distinção - e facilita a procura de responsabilidades...
A coisa mais feia que há é pedir desculpas e depois esperar que o assunto esteja resolvido, é pedir desculpas desonestamente, é querer comprar o perdão com um (ou dois, ou mil) pedidos formais de desculpa. Parece haver quem ache que o mundo deve à Igreja um agradecimento especial pelos pedidos de desculpa. Há quem choramingue que a Igreja é vítima, sim, vítima, e não algoz. Vítima porque pede desculpas e ninguém a deixa sossegada. Pois bem, tendo em conta as Cruzadas (diz que Urbano II em 1096 também disse umas marotices em relação ao Islão, mas sempre num espírito de amor cristão), as Guerras Religiosas, a Inquisição, o silêncio ensurdecedor perante o Holocausto, a colaboração activa com o fascismo espanhol e as abananadas ditaduras latino-americanas, tendo em conta estes e outros episódios na lista infindável de crimes da Igreja, o Vaticano pode pedir desculpas até perder o fôlego e ainda assim não chega. E como diz um personagem na série americana ‘Six feet Under’ (estou a parafrasear): “you don’t get to cry, you take it like a man!”
A Alemanha, consciente da sua culpa histórica, aprendeu uma verdadeira lição, e toda a identidade alemã – institucional e não só – assenta numa reflexão séria sobre o passado, sobre as responsabilidades que a nação alemã carrega. E é precisamente por toda a gente acreditar na natureza genuína dessa contrição, dessa penitência colectiva, que hoje, mais do que nunca, a Alemanha volta a ter um papel preponderante nos destinos da Europa e do mundo. A Alemanha do pós-guerra took it like a man, e fez o que tinha que ser feito, sem estar sempre à espera que a recompensassem por isso. Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes fala de uma vontade heterónoma, que age moralmente para ser recompensada (com uma ida para o céu, por exemplo), e uma vontade autónoma, que age moralmente, porque segue a razão incarnada nos princípios universais do imperativo categórico. Se fossem pessoas, a Alemanha aprendeu a agir de acordo com uma vontade autónoma, enquanto o Vaticano insiste no contrário.
As recentes declarações do papa demonstram precisamente uma aflitiva falta de aprendizagem com o passado.
Quanto aos crimes dos ‘outros’, dos bolcheviques, dos jacobinos, e de outros ateus furiosos, quem me dera que houvesse uma instituição, uma hierarquia que os representasse e que permitisse o mesmo processo de aprendizagem que tanto falta à Igreja. Mas não há. Sorry. É precisamente a continuidade milenar da Igreja que a obriga a aceitar a culpa do que fez – e não fez – séculos depois de o ter feito – ou não.
Mas por mim, posso dizer que os crimes do Terror de 1794 e 1795, do ‘socialismo real’ do século vinte, ou até do exército republicano espanhol são lições importantes, que influenciam de forma decisiva os meus ideais e a minha visão do mundo. Acima de tudo porque me ensinam o efeito venenoso que certezas, dogmas e ideologias rígidas podem ter nas vidas das pessoas. Já a Igreja continua a definir-se por dogmas, certezas e rigidez.
Não admira portanto que os pedidos de desculpa saibam a pouco.
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3 comentários:
Pode dizer-se que este comentário é... bonito... sim senhor... bonito.
È tamanha a lucidez, é grande o discernimento e enorme a sabedoria !!
Bate-se em todos, com o objectivo de dar mais uma cacetada na Igreja Católica. Assim, não vai aparecer um facho a comentar, espera-se...
O embrulho é bonito, mas depois de se retirar o papel o ‘primarismo’ (como já alguém o disse) aparece.
É tal a superioridade intelectual que só pode vir da esquerda moderna!!! Sendo moderna não tem telhados de vidro !!
Aaaa... faltou falar na ETA...
Camisa Azul
Caro Camisa Azul,
Não sei se reparou que não usou um único argumento para demonstrar o que quer que fosse. Para quem acusa os outros de primários devia esforçar-se mais por dar substância ao seu veneno. Ou prefere mesmo o insulto quase gratuito?
Caro Oppenheimer,
Acho que o seu plano maquiavélico para não aparecerem fachos falhou...
Grande Republicano, Maquiavel...
Ó Camisa Azul, não se zangue. Mas mude de camisa, que essa está manchada de sangue.
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