segunda-feira, junho 26, 2006

Academia e homilia



Em relação a um comentário ao meu post de ontem deixava apenas as seguintes breves notas:

1 – A Universidade demite-se objectivamente de assinalar o final das licenciaturas com um acto de entrega de diplomas, invocando precisamente a existência das cerimónias da benção. Aqueles que aparentemente acorrem em massa à iniciativa não o fazem por especial devoção, mas sim porque não tem como festejar a conclusão das suas licenciaturas. Falo com conhecimento de causa, pois observei o fenómeno enquanto aluno e continuo a verificar que assim é enquanto docente. Não questiono a fé que move muitos dos que acorrem à Alameda, questiono sim a instrumentalização pelas autoridades eclesiásticas, que aproveitam para insuflar artificialmente o número dos seus fiéis.

2 – Uma cerimónia neutra, de entrega de diplomas, de abertura de ano académico ou de celebração universitária não é uma liturgia concorrente da religiosa, representando sim interesses e valores distintos. Não há concorrência porque não estão no mesmo plano: a esfera religiosa tem o seu espaço próprio, no qual é livre de se desenvolver e manifestar, o mesmo sucedendo quanto ao mundo académico. O que critico é esta invasão do espaço universitário que o priva das suas próprias tradições e solenidades. Assim como não pretendem os conselhos científicos e os senados das universidades organizar provas de agregação nos templos católicos, igualmente clara deveria ser a separação das esferas no sentido contrário.

3 – Um cerimónia neutra é para todos, não deixando fora das escadarias da reitoria os ateus, os agnósticos, os judeus, os protestantes e todos os que não têm lugar nos ritos católicos. Uma cerimónia neutra não teria por objectivo propagar qualquer doutrina, ideologia ou superstição, apenas celebrar um passo fundamental na formação individual de cada um, o preenchimento de uma etapa de aquisição de conhecimento. É esse o denominador comum entre todos os finalistas.

4 – Quanto àqueles em nome de quem falo, limito-me a colocar-me no papel de quem já foi excluído de um acto académico tomado de assalto por uma fé religiosa particular. A legitimidade que invoco para o efeito é apenas a do grupo de que faço parte e que sente na pele a exclusão. E, independentemente dos números daqueles que elegantemente são descritos como hordas, sempre me pareceu que a discriminação de um é tão condenável como a discriminação de dois ou de cem, tendo em conta o carácter universal e intemporal de determinados valores.

5 – Finalmente, quanto à suposta piada fácil relativa ao pedir perdão pelos excessos, devo assinalar que, ao contrário do que podem pensar, não foi nada fácil ensaiar um esforço de contenção tão grande que evitasse o potencial humorístico da ideia de actos religiosos inseridos no final de festividades universitárias pautadas por rios de cerveja, autodeterminação sexual e música demoníaca.

2 comentários:

No Quinto disse...

Breves notas às breves notas:

1- A Universidade não se demite de assinalar o final das licenciaturas com um acto de entrega de diplomas por causa da existência das cerimónias de bênção. Fá-lo, isso sim, porque não tem capacidade para emitir os diplomas em tempo útil. Qualquer licenciado conhece o ritual de os ir buscar um ou dois anos depois de concluída a licenciatura. As autoridades eclesiásticas não precisam de aproveitar o que quer que seja para "insuflar artificialmente" o seu número de fiéis. Chega a ser divertida a noção de que a Igreja Católica precisaria deste cerimonial como uma espécie de prova de vida ou de força a que malevolamente atrai uns incautos e ressacados pré-licenciados. Existe uma cerimónia religiosa a que vai quem quer. E é só.

2 - Não é a Igreja Católica que invade o espaço universitário. Bem pelo contrário, é a Universidade que não encontra necessidade (ou não é capaz) de estabelecer qualquer cerimonial que represente os tais interesses e valores distintos. E a culpa disso não pode ser assacada à Igreja. A ideia sedutora, mas demasiado linear (na minha opinião, claro está), da separação total das esferas acaba por originar momentos de verdadeira esquizofrenia.

3 - Uma missa não é uma cerimónia neutra. E, em bom rigor, conheço poucas. Concedendo que, na tal esfera universitária, seria possível encontrar o tal denominador comum, pergunto: isso "desinsuflaria" a cerimónia religiosa? Não creio. O homem é um ser religioso. Goste-se ou não.

4 - A bênção dos finalistas não é um acto académico ainda que o integrem nas "semanas académicas". É um acto religioso e de fé (para quem a tenha, claro está). Em relação à discriminação alegada, o problema não é de número mas de adequação. É evidente que uma celebração religiosa, qualquer que ela seja, é discriminatória para os não-crentes. Mas esta discriminação é inerente à própria razão de ser deste tipo de actos. Estes não se destinam a todos, apenas aos que acreditam. Não há, por isso, qualquer assalto. Nem violação do princípio da igualdade. A confusão das esferas existe precisamente aí.

5 - O curioso é que, depois dos rios de cerveja, da autodeterminação sexual e da música demoníaca, a grande maioria continua a sentir a necessidade de aderir em massa ao tão malfadado acto religioso. Muito mais potencial humorístico tem o puritanismo de conveniência.

JV

Pedro Delgado Alves disse...

1 - A demora na emissão do diploma não tem qualquer fundamento que não o atraso e nao pode justificar a demissão da universidade de tarefas conexas. Cumpre sublinhar que, há poucos casos em que se realizam já cerimónias de entrega de diplomas em universidades públicas, sem que seja invocado qualquer problema técnico para o evitar.

2 - Ao escolher para local da sua cerimónia o campus e ao pretender dar uma chancela final às licenciaturas com uma solenidade religiosa eu pelo menos detecto indícios dessa invasão.

3 - O homem é livre de ser um ser religioso no seu templo, em sua casa. Mas o homem não é livre de impor aos outros que tenham de ser religiosos à sua maneira - os estudantes judeus e budistas, sendo religiosos, estão excluídos.
De qualquer forma, penso que terei sido mal interpretado - quando referia a cerimónia neutra não me reportava à missa existente, mas sim à entrega de diplomas que deveria existir.

4 - Convenhamos que a inserção no calendário das festividades académicas de encerramento do ano e das licenciaturas deste evento não é uma pequena coincidência que se repete anualmente...

5 - Meu caro, não estava a criticar os adeptos do sexo, alcóol ou do demo. Longe de mim. Procurava apenas realçar que não me parece ser a contrição ou a fé profunda que determina a ida de muitos à benção, mas sim o facto de ser mais um evento do programa das festas - vão à benção como quem vai aos Ena Pá...