quarta-feira, outubro 26, 2005

Guarda Nacional pouco Republicana


Descobri há pouco enquanto folheava a Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana uma interessante norma relativa às datas comemorativas celebradas por aquela instituição. Determina o artigo 14.º da referida lei o seguinte:

"1- O Dia da Guarda Nacional Republicana é o dia 3 de Maio, em evocação da lei que criou a actual instituição nacional, em 1911.
2 - É também consagrado o dia 16 de Julho à padroeira da Guarda Nacional Republicana, Nossa Senhora do Carmo.
3- As unidades da Guarda têm direito a um dia festivo para a consagração da respectiva memória histórica."

Aqui fica mais um sinal de que a separação entre o Estado e as Confissões Religiosas está longe de ser dada por adquirida em Portugal, sinal esse que se torna ainda mais duro e irónico se tivermos em conta que se trata precisamente de uma instituição criada pela I República. Ficamos pois limitados a uma Guarda Nacional que ostenta na sua designação uma referência republicana em total contradição com a existência de uma "padroeira" com consagração legal.

8 comentários:

No Quinto disse...

Aquilo que vos custa perceber é que os cidadãos e cidadãs são também pessoas e que a fé faz parte, não só da esfera pessoal, mas da esfera social em que se movem. A Guarda Nacional é, de facto,Republicana (antes era Real) mas não deixa de ter padroeira porque os homens e as mulheres que a compõem não deixam de ser quem são e não deixam de gostar que assim seja. Somos um país de tradição cristã. por muito que vos custe. Bastará um leve bosquejo por outras forças militares e encontrarão certamente mais padroeiros. Experimentem explicar a um paraquedista que, por causa da ética republicana, S. Miguel Arcanjo deixa de ser o seu padroeiro oficial. Esse republicanismo acéptico, mata-frades, jacobino, que despreza o próprio povo e que o quer desenraizado, livre de outras influências que não sejam a do benfazejo Estado, foi chão que deu uvas. E não voltará. Porque as pessoas não têm paciência para o aturar.
JV

Oppenheimer disse...

No nosso país, e fruto duma esperiência colectiva bem esclarecedora, as 'pessoas', de facto, perderam a paciência. E JV sabe bem em relação a quê: à Igreja, à fé primária, à fé redutora e obscurantista; as igrejas estão vazias, cidadão, e vão ficar ainda mais vazias. E JV tem que se preparar porque quanto mais vazias as igrejas ficarem, quanto mais Portugal abraçar a modernidade europeia, mais a igreja vai ter que adaptar-se, ou morrer. E garanto a JV que ficou muito por fazer em 1910-11 e que alguns de nós só estão à espera do último estertor da Santa Madre para lhe dar o golpe de graça. Parafraseando Mirabeau ("Aos judeus como indivíduos tudo; aos judeus como nação nada"): "À Igreja como encarnação institucional da fé individual tudo; á Igreja como instituição privilegiada nada". Quanto mais depressa JV entender isso, menos doloroso será para ele o Dia do Juízo Final.

João Gato disse...

O culto dos santos é uma das caractrísticas mais degradantes da igreja católica, é a sua vertente "pop", de mobilização das massas em torno de um ídolo, que afasta o fiel da vivência da fé enquanto experiência pessoal e edificante.
Como se sentirá um judeu, ou um muçulmano, ou um protestante, que não acreditam no culto dos santos, a servir nas forças armadas portuguesas? Terá de aceitar o culto do padroeiro?
Provavelmente, qualquer um deles não se está a ralar minimamente para isso, porque sabe que a institucionalização de um padroeiro é como a adopção de uma mascote: faz-se por hábito, e soma-se aos demais hábitos estabelecidos.
Mas um cidadão português aconfissional tem o direito a sentir-se incomodado.
Os portugueses não são só os católicos; o que nos une enquanto comunidade nacional está acima disso.
O mesmo se diga quanto aos crucifixos que ainda existem em muitas escolas públicas.
O que nos distingue enquanto republicanos laicos (não necessariamente ateus) de um zelota religioso é o mesmo que nos distingue de um jacobino radical (passe o aparente pleonasmo): o respeito pela liberdade religioso, e a exigência de que isso comece pelo Estado.

No Quinto disse...

Por partes, como Jack, o Estripador:

Opp.: Eu não seria tão enfático (nem tão agressivo) no anúncio do fim da Igreja. Afonso Costa, seguindo uma longa linhagem de delinquentes, fez o mesmo e a coisa não lhe correu particularmente bem. A ideia de que a contemporaneidade esvazia igrejas está longe de ser provada. As últimas Jornadas Mundiais de Juventude foram bem a prova da vitalidade do catolicismo. Essa sanha não quadra bem a quem proclama a Fraternidade.

João Gato: Não há nada de degradante no culto dos Santos. São bons exemplos.
Agradeço-lhe a explicação do que é a vivência pura da Fé e quais as formas aceitáveis e inaceitáveis de a manifestar. Tentarei tê-la presente.
Como também reconhece, o tal muçulmano ou o judeu que sirvam nas forças armadas privilegiarão o espírito de corpo e darão pouca importância ao facto de terem um patrono católico. Não conheço casos reais (não hipóteses teóricas) de militares ateus, agnósticos ou de confissões não católicas que se tenham manifestado contra esse facto. Mais que não seja, essa circunstância fará parte da história das suas unidades e merece respeito por isso.
Acredito que ache que o apelo à oração muçulmana a partir dos minaretes também deva ser abolido para não incomodar os não fiéis. Eu acho bom que se mantenha e que exista em Portugal, a par com o toque dos sinos.
Não há dúvida de que os portugueses não são só católicos e que aquilo que nos une vai para além disso. Mas são católicos na sua maioria e o catolicismo faz parte daquilo que somos. Crentes ou não, praticantes ou não. E essa circunstância é sempre omitida quando se fala em igualdade. Tratar de forma igual o que é diferente faz parte da habitual distorção niveladora do laicismo.
A fórmula de respeito pela liberdade religiosa que preconiza levaria a que Escolas e Hospitais Públicos deixassem de poder ter nomes de santos católicos, que as ruas perdessem as suas designações de sempre, etc. Seriam substituídos por quê?
Falando de desconfortos, nunca se fala do causado à maioria em nome do incómodo causado à tal minoria que, repito, salvo alguns casos exaltados, nem sequer existe.
O Estado que tanto preza tem que começar o exercício do respeito pelas pessoas que o compõem e não contra essas mesmas pessoas, em nome de interpretações dúbias de abstracções teóricas.
JV

Oppenheimer disse...

Falando de maiorias e minorias, o que nos une e nos separa e mais não sei o quê. O meu amigo JV, que é conhecedor da história de Portugal não terá deixado de notar que o liberalismo, o republicanismo e a democracia acabaram por sair vitoriosos em Portugal. Não por qualquer determinismo histórico. Mas porque os portugueses assim o quiseram. Quando leio as palavras do meu amigo JV, não posso deixar de sentir que ele está algo desiludido com o facto de que Portugal hoje é moderno, progressista, uma República. Sobram do 'antigamente' uma igreja dilacerada pelas escolhas difíceis que a modernidade lhe impôs e impõe, abandonada pelos fiéis, uma sombra do que já foi. Pensa no poder, na influência da Igreja da geração dos nossos pais e avós. Pensa nela agora. Vae victis, JV, Vae victis.
Eu fui a Taizé. Foi muita giro. Também cantei umas coisas sobre Jesus e tal. Uma experiência espiritual fantástica. Mas suspeito que nem temos que ser cristãos para sentir a intensidade espiritual de Taizé, nem temos que ser católicos praticantes, activos, para ir para Colónia participar numa histeria colectiva, em momentos Cecil B DeMille nas margens do Reno.

No Quinto disse...

Opp.: Quanto ao liberalismo e ao republicanismo não tenho nenhuma prova que os portugueses os tenham querido. O próprio Alexandre Herculano duvidou disso, no que ao liberalismo diz respeito. E em 1910, caro Opp., ganhou a inércia.
Engana-se o meu amigo quando diz que estou desiludido com o facto de que Portugal hoje é moderno, progressista, uma República. Desilude-me, sim, o caminho para onde o mais retrógrado e anacrónico republicanismo ajudou a levar-nos. De progresso, nem traço. Talvez alguma modernidade, mas nenhuma contemporaneidade digna de nota.
Aquilo que verdadeiramente me desilude é o facto de, em nome da Razão, do Liberalismo, da República, do Estado Novo, se ter construído um Estado afrancesado de filosofia positivista que nada quer com a res pública e, muito menos, com o bem comum das pessoas a quem devia servir. O que me incomoda é perceber que a República Portuguesa é indissociável da decadência de Portugal.
Essa da Igreja abandonada pelos fiéis e angustiada pelas escolhas que são impostas tem graça, mas não é verdadeira. Desiludam-se os que a querem ver vencida e que a pretendem substituir por panteões próprios no coração dos povos. É que ela está e vai onde quase ninguém quer ir. Acta, non verba. Opp. Acta, non verba.
E, de facto, o Opp. tem razão. Em Colónia, eram todos budistas. Disfarçados. Não fossem os poucos católicos presentes perceber o logro.

Oppenheimer disse...

Ah, o mais antigo queixume da humanidade: a 'decadência'...
Não há geração que não sofra de uma nostalgia por qualquer coisa que nunca existiu. JV sabe bem que quando a República honrou Portugal com a sua presença em 1910, já não havia muito para estragar. O país era mais comparável com uma loja de pronto a vestir com um sinal de 'tresapassa-se' à porta, do que com uma nação moderna. JV é demasiado novo e tem um futuro demasiado risonho à sua frente - liderando, sem dúvida, uma revolta popular contra a tirania da República - para se deixar levar pela conversa da decadência! A vida é bela, cidadão, e o nosso país nunca foi mais digno de pertencer ao continente europeu! Deixe-se de decadências, cidadão e digo-lhe mais: ego sum ultrafelix ad res publica portugaliae. Devo ter dito disparates, mas o latim, esse sim, o latim, a língua de Roma, entrou numa decadência terminal.

João Gato disse...

JV: Concedido-as Jornadas Mundiais da Juventude foram uma demonstração de vitalidade. Mas o Rock in Rio também foi.
A degradação do culto dos santos não está em tomá-los por bons exemplos; está em tomá-los por intercessores junto de Deus, à laia de lobbying, e em deificá-los como no paganismo - que, pelo menos, enquanto exercício de explicação do cosmos, tinha a virtude de manter uma relação honesta com a ficção e a criação artística.
Quanto ao apelo à oração feito a partir dos minaretes, estamos ainda no plano da religiosidade dirigida aos fiéis. Uma coisa é querer que o Estado, enquanto inconfessional, não adira ao proselitismo, e que, se possível, dê todas as oportunidades a todas as confissões religiosas (e parece-me que garantir a exibição dos símbolos de todas as confissões religiosas em pé de igualdade seja tão impraticável que mais vale abster-se de qualquer movimento nesse sentido). Outra coisa é impedir que uma religião exerça o seu culto.
É pela mesma ordem de ideias que acho que o Estado não deve abrir as portas dos seus estabelecimentos públicos a qualquer tipo de evangelização. Ainda que a esmagadora maioria das pessoas não se incomodem com isso, é uma questão de princípio.
E isso não implica desconsiderar a atenção que a Igreja Católica deve merecer da República por caus da sua representatividade - veja o que eu disse sobre o luto nacional da irmã Lúcia num post de 14 de Fevereiro.
Quanto à experiência da fé, não pretendo ensiná-lo como deve vivê-la; mas arrogo-me no direito de dar a minha opinião sobre o assunto.