quarta-feira, março 09, 2005

Israel

O conflito Israelo-Árabe e Israel, em particular, são temas que esporadicamente me fazem sentir desconfortável na minha pele de 'esquerdista'. Da menina dos olhos da esquerda europeia, o Estado de Israel foi gradualmente gravitando em direcção a um estatuto de 'bête noire'. O mais tardar depois da Guerra dos Seis Dias em 1967, em que Israel conquistou a Península do Sinai, Gaza e a Cisjordânia, o pequeno país foi lentamente adquirindo as caracterísiticas de tema unificador de uma esquerda saudosa de grandes narrativas, causas, paixões. Esta tendência agravou-se evidentemente a partir do fim da Guerra Fria: o colapso da única alternativa ideológica às formas de organização política e económica europeias e americanas com vocação global, deixou-nos a todos com a horrível sensação que já só se discutem pormenores, detalhes, minudências. A grande narrativa marxista foi - algo injustamente - arrastada para o baú das memórias juntamente com os regimes ditatoriais do Leste da Europa. Tirando a Coreia do Norte e Cuba, há poucos estados que não levem a cabo reformas mais ou menos alinhadas com os consensos globais resultantes do colapso do sistema de Bretton Woods e do Muro de Berlim. Aparentemente, até o Mundo Árabe está a acordar por razões várias para as vantagens aparentes da abertura económica e política. Sem querer embarcar num discurso teleológico e/ou determinista, dá-me a impressão que caminhamos para uma situação em que os consensos vão progressivamente ocupando a maior parte da acção política, fazendo com que os grandes debates sejam empurrados para a esfera da política internacional. No caso português, a participação no projecto europeu, e o Pacto de Estabilidade e Crescimento em particular, são exemplos de compromissos estruturais que reflectem esses tais consensos fundamentais sobre questões tão variadas como política monetária, direitos humanos, ambiente etc. Que saudades, dirão alguns, das grandes lutas, dos tempos em que a política ainda movia multidões! Que saudades de temas verdadeiramente fracturantes! Enfim, que saudades de assuntos em que o zelo emancipador da esquerda pode ser posto à prova! Estamos fartos de discutir banalidades anestesiantes! Iraque: mandamos 120 tipos a cavalo ou 0? Economia: combatemos o desemprego com a melhoria das qualificações e com a diversificação do sector productivo ou com o relaxamento das leis laborais e a simplificação do sistema fiscal, acabando com o princípio redistributivo? Política monetária: não há debate, quem manda é o Ecofin, o Eurogoup e o BCE; Finanças públicas: 3%, 3%, 3%...
Eureka, ouve-se de Braga aos Urais! De Inverness a Palermo! Finalmente encontrámos os 'bons' e os 'maus': tanques contra crianças; um Estado armado até aos dentes contra civis; opressão contra resistência; a testa-de-ponte de Washington contra a encarnação colectiva da injustiça global. Os nossos medias confundem datas, factos, manipulam notícias etc, mas não se trata aqui de má fé. Trata-se, sim, de um grande alívio: finalmente podemos dormir descansados. Somos consumistas, só conhecemos manifestações das histórias dos nossos pais, gravitamos qual aristocracia global acima da miséria que aflige dois terços da humanidade: mas pelo menos chamamos nazis aos israelitas, comparamos Jenin a Auschwitz, dizemos que "eles deviam saber o que isto é; eles sofreram isto na pele", comparamos Sionismo ao Apartheid, sussuramos que "no fundo só deixaram que se fundasse aquela aberração daquele estado porque tinham má consciência", "aquele estado só causa problemas", "o maior perigo para a paz mundial"... Uma pequena novidade para a esquerda entusiasmada pelo conforto deste último conflito entre opressores e oprimidos: o 'problema', meus caros, não é o Estado de Israel, o 'problema' não começa em 1948. O 'problema' já existe há séculos nos ghettos, nos Staedtl, nas ruelas e nas grandes praças de todas as capitais europeias - com especial ênfase para o nosso Rossio. Para os Judeus, Israel não é o 'problema'. É a solução do 'problema' que nunca foi resolvido, que foi sendo arrastado, que foi assumindo diferentes formas, até que em 12 terríveis anos se esclareceram as últimas dúvidas, se ouviu o canto de cisne da experiência singular do judaísmo europeu, que tanto enriqueceu o nosso continente. O 'problema', cara Esquerda, é que a Europa, o Iluminismo, a Modernidade, falharam na assimilação e/ou na aceitação da diferença do Judaísmo no seu seio; o 'problema' é que nunca a Europa conseguiu fazer os Judeus esquecer Jerusalem, Israel.
Israel é a solução. E se os Judeus aprenderam alguma lição com o passado é que só podem confiar neles próprios para sobreviver. Trata-se agora de salvar a alma de Israel e não deixar que a legítima defesa passe a justificar toda uma panóplia de injustiças, violações do direito internacional, e a brutalização da sociedade. Para aqueles que não conhecem Israel só do Público, do telejornal e das conversas com os amigos, há todas as razões do mundo para ser optimista. Numa conferência organizada pela Fundação Friedrich Ebert (julgo que nos finais de 2003), e em que tomou parte, entre outros, Yossi Beilin (agora deputado pelo partido de esquerda - sim, de esquerda -Yahad-Meretz), este afrimava-se convicto, ao contrário da maior parte dos israelitas, que Yasser Arafat "merecia mais uma hipótese", mas apelava áqueles que demonizavam Sharon a dar-lhe igualmente o benefício da dúvida. Trata-se de afirmações corajosas de quem não teve medo de remar contra a maré, numa altura em que Arafat estava completamente desacreditado e Sharon tinha reocupado grande parte dos Territórios.
Hoje a situação é outra. Sharon, por motivos aparentemente oportunistas, tomou uma iniciativa unilateral: abandonar Gaza. Sharon, o "carniceiro", o "assassino" etc, abandonará Gaza. Aprendemos todos uma lição já antiga: no Médio Oriente nada é previsível - o governo de Begin, de direita, faz a paz com o Egipto em 1979, Rabin assina Oslo em 1993, Barak retira do Líbano em 2000, Sharon arrisca a maioria parlamentar, o governo e a vida para retirar de Gaza em 2005.
Para concluir, em nome da defesa dos direitos dos Palestinianos, certos sectores e indivíduos que se dizem de esquerda irrompem regularmente em delírios anti-sionistas, e até anti-semitas. Claro que este fenómeno tem a ver, até certo ponto, com a ignorância dos factos históricos, ao mesmo tempo que revela, no recurso permanente ao simplismo, o saudosismo pelas grandes narrativas. De facto, reflecte acima de tudo, uma tentativa de apresentar Israel como uma mera extensão dos EUA, um capricho da super-potência, criatura dos Poderosos, aberração neo-colonial. Israel, por vezes por culpa própria, liberta os instintos mais xenófobos e obscurantistas da Esquerda. Mas o que se vai sussurando, aquilo que durante a segunda Intifada veio à superfície em conversas e artigos, é que o próprio Estado de Israel é ilegítimo, um erro, um perigo para a paz mundial.
Se isto tudo forem delírios paranóicos, ainda bem. Adoraria estar equivocado. Mas enquanto Israel sentir que a opinião pública mundial, e a europeia em particular, continuam a tratar este tema como um fetiche, um tema sobrecarregado de simbolismos que lhe são alheios, confluência de todas as frustrações, aspirações, ódios e amores daqueles que querem um mundo mais justo, enquanto este for o caso, a sobrevivência continuará a ser a legítima prioridade de Israel.

3 comentários:

Joao Galamba disse...

Caro David,
Sem querer fazer um comentário extensivo ao teu post, deixa-me destacar dois pontos:

"Sem querer embarcar num discurso teleológico e/ou determinista, dá-me a impressão que caminhamos para uma situação em que os consensos vão progressivamente ocupando a maior parte da acção política, fazendo com que os grandes debates sejam empurrados para a esfera da política internacional."

Aqui concordo absolutamente contigo. Não sei o que pensas sobre isso, mas as utopias cosmopolitas de um world state arrepiam-me...

2-Embora concorde em parte coma tua apreciação da questão de Israel, penso que o que escreves não pode ilibar Israel de críticas e reparos (sem anti-semitismos, que os há).
Acho que devemos deixar de procurar um Mau na questão Israelo-Palestiniana e reconhecer que houve erros dos dois lados e dizer: adiante. Facilitavo-nos a vida (e aos dois povos que sofrem com o conflito). Não sei se pretendes ilibar Israel ou não. Se essa é a tua intenção, discordo.
Não sou um especialista (longe disso) na questão, mas espero que compreendas a minha posição.
Um abraço

No Quinto disse...

Com excepção deste trecho "A grande narrativa marxista foi - algo injustamente - arrastada para o baú das memórias juntamente com os regimes ditatoriais do Leste da Europa.", diria que assino por baixo.
Calma, é uma vez sem exemplo.

JV

A. Cabral disse...

Nao percebo em como isto joga no nosso dialogo. Espero nao te chocar mas nada aqui e' assim tao novo. Percebe-se que Israel quer um Estado e que o tenha entao!!! Ha um povo que ali nasceu, viveu e cresceu, tem direitos pois entao. Mas aqui nem sequer se fala da Palestina. Hamlet without the prince? A questao nao sera porque e que tem Israel de ser incompativel com um estado Palestiniano? Um Estado digno e nao um guetto com uma autoridade palestiniana a fazer de policia para reprimir justa revolta?